É ano de eleição, de Copa e de nacionalismo: precisamos falar (e agir) sobre isso

Por Silvio Bressan, sócio-diretor da Fato Relevante

Publicado em 7 de JUNHO de 2022


Em ano de sucessão presidencial e Copa do Mundo, a polêmica sobre patriotismo e o uso das cores e símbolos nacionais sempre foi um ingrediente a mais no ambiente eleitoral. Desde os anos 70, do tricampeonato no México e do “Ame ou Deixe-o”, vivemos períodos em que o verde e amarelo, o hino ou a bandeira passaram a representar, mais do que uma atitude patriótica, uma posição político-partidária. Foi assim quando, em 1992, o então presidente Fernando Collor, ameaçado de impeachment, pediu que todos fossem às ruas vestindo verde ou amarelo e acabou vendo uma multidão de pessoas trajando preto nas grandes cidades do país. Menos de dois meses depois, estava afastado da Presidência.

O atual presidente, Jair Bolsonaro, tenta surfar a mesma onda. Adotou o verde e amarelo na campanha e capturou do Hino Nacional o slogan de seu governo: “Pátria Amada Brasil”. No dia da votação, em 2018, vestir a camisa amarela da Seleção Brasileira passou a identificar os eleitores bolsonaristas. Em reação, muitos torcedores trocaram a “amarelinha” da Seleção pela camisa reserva, azul. Da mesma forma, para quem frequentou o primário na ditadura e era obrigado a perfilar e cantar o hino antes das aulas, a música de Francisco Manuel da Silva e a bandeira representavam um trauma ou constrangimento na adolescência e juventude.

Cada vez mais, o patriotismo ou nacionalismo foram sendo identificados com uma corrente mais conservadora, algo ultrapassado e indigno de atenção. O movimento parecia ecoar as palavras do literato inglês Samuel Johnson, que viveu no século XVIII e para quem “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. De acordo com ele, “o patriotismo é um conceito que pode ser facilmente manipulado, e por todo o tipo de indivíduo; ao apresentarem-se como patriotas, até mesmo os canalhas podem prosperar”.

O problema é justamente esse: eles prosperam. Desde que o conceito de História da Europa como fundadora da civilização cristã e ocidental ganhou força, no século XIX, historiadores franceses e alemães passaram a competir pela hegemonia e tradição desse mundo civilizado. Era preciso estudar a genealogia da Nação para exaltá-la como fonte da civilização ocidental. De lá para cá, o nacionalismo esteve na origem das duas grandes guerras e ajudou a produzir uma penca de ditaduras, com mais de uma centena de milhões de mortes: o fascismo na Itália (1919-1943), o nazismo na Alemanha (1933- 1945), o stalinismo na União Soviética (1927-1943), o salarizmo em Portugal (1933- 1968) e o franquismo na Espanha (1939-1975) são exemplos dos estragos que o nacionalismo exacerbado pode produzir. Na definição do arqueólogo francês, Laurent Olivier, “o passado é uma arma de destruição em massa”.

Mais recentemente, o mesmo fenômeno impulsionou os conflitos na Iugoslávia (1991- 2001), a chegada ao poder de políticos com um forte discurso nacionalista, como Viktor Orbán na Hungria (1998-2002 e 2010-atual), Donald Trump nos Estados Unidos (2016- 2020) e Jair Bolsonaro (2018-atual). Neste ano, a candidata conservadora Marine Le Pen atingiu sua maior votação na História ao fazer 41% dos votos no segundo turno, aproximando cada vez mais o seu “Reagrupamento Nacional” do poder na França. Como exemplo mais acabado e contemporâneo dos danos do nacionalismo extremo, ainda temos Vladimir Putin na presidência da Rússia (2000-2008 e 2012-atual) e responsável por levar, desde fevereiro deste ano, a “grande mãe russa” a uma guerra imprevisível na Ucrânia ao custo de milhares de vidas e do isolamento de seu país em grande parte da comunidade internacional.

Esse cenário ainda está em transformação. Como dizia o filósofo italiano Benito Croce, “toda a História digna desse nome é contemporânea”. O passado não pode ser modificado, mas pode ser reinterpretado para que não se repita no presente ou ameace o futuro. O discurso globalizante a partir dos anos 90, com o chamado “Fim da História”, do filósofo e economista americano Francis Fukuyama fez muita gente acreditar que o nacionalismo estava definitivamente superado. Segundo Fukuyama, a difusão mundial das democracias liberais e do livre capitalismo de mercado sinalizavam o fim da evolução sociocultural da humanidade. Só que a História nunca acaba.

Como o nacionalismo foi abandonado por boa parte dos estudiosos e agentes políticos, outros aproveitaram para se enrolar na bandeira do país e recuperar valores patrióticos. Desde então, a cada crise global – como a de 2008 ou a pandemia do coronavírus – esse movimento se fortalece e recupera conceitos antigos e danosos, como a xenofobia, o racismo e o militarismo. A lição que fica é que por mais tentadora que possa parecer a ideia, a História Global não substitui a História Nacional.

O nacionalismo pode ser tudo, menos inócuo e impopular. É preciso enfrentar esse debate nos mais diferentes níveis. O torcedor não pode ter vergonha de exibir a camisa de sua seleção ou cantar o hino nacional, da mesma forma que os intelectuais e agentes públicos precisam colocar o nacionalismo em outra perspectiva. Não precisa, nem deve, ser um dogma, mas tem de ser estudado e utilizado como um fenômeno natural, que pode contribuir na construção de uma sociedade mais conectada e inclusiva. Quando paramos de falar no nacionalismo e de tentar escrever uma história em comum para um povo, ele não morre, apenas fica à espera do primeiro oportunista ou canalha, na definição de Johnson. Como já alertava a historiadora americana Jill Lepore, em um artigo de 2019, “escrever História Nacional cria uma série de problemas; no entanto, recusar-se a escrevê-la cria mais problemas ainda e esses problemas são muito piores.”

Silvio Bressan

Sócio-diretor da Fato Relevante

Bressan é jornalista graduado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), com especialização em Estilo Jornalístico. Tem 35 anos de experiência como jornalista e assessor.  No setor público, foi assessor da liderança do governo na Câmara Municipal (2005-2008), chefe de gabinete da Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de São Paulo (2019) e assessor especial na Câmara (2020). Em redação, entre 1986 e 2005, trabalhou nos grupos RBS (repórter e subeditor), Gazeta Mercantil (repórter), Editora Abril (editor), Jornal da Tarde (repórter de Política) e O Estado de S.Paulo (repórter especial). Como repórter ou assessor, já atuou em mais de 20 campanhas eleitorais em São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso e Ceará.