A PERERECA AYEAYE SOBREVIVE À ESPERA DE UM FUTURO SUSTENTÁVEL NO CERRADO

Por Bruno Blecher, especialista em agronegócio e meio ambiente e sócio-diretor da Fato Relevante

Publicado em 25 de novembro de 2021

 

Nestes tempos sombrios de mudanças climáticas, desmatamentos e incêndios, uma perereca minúscula, de apenas 3,5 centímetros, ganhou um tamanho imensurável no Cerrado. Ameaçada de extinção, a pithecopus ayeaye é um indicador da qualidade de água no bioma. 

“A gente às vezes vê coisas valiosas bem na frente do nosso nariz e não percebe. Só percebe quando as coisas são perdidas, às vezes, tarde demais”, diz Reuber Brandão, um biólogo apaixonado pelos sapos e estudioso da pithecopus ayeaye .

Os anfíbios possuem na pele um arsenal químico, que evoluiu para protegê-los da dessecação, dos predadores e de doenças. 

“As pererecas contam uma história evolutiva do Cerrado e nos ajudam a entender como é que as terras altas do bioma se isolaram e como isso favoreceu a formação de vários bichos endêmicos. Esses ambientes onde elas estão são ilhas climáticas, são remanescentes, com temperatura um pouco mais amena e um pouco mais chuvosa do que as áreas de baixada”, diz Brandão. 

O biólogo coordena um projeto de proteção da perereca apoiado pelo CEPF (Fundo de Parceria Para Ecossistemas Críticos), que financiou 60 projetos de regeneração e conservação no Cerrado e foi cliente da Agência Fato Relevante entre fevereiro e setembro deste ano. 

Nosso principal objetivo no trabalho com a CEPF foi colocar a problemática do Cerrado no radar da imprensa, que costuma privilegiar outros biomas, como a Amazônia, na cobertura de meio ambiente.  

Proteger pererecas em risco de extinção em um bioma degradado e dominado pelo plantio intensivo de soja e milho têm um sentido emblemático. 

Berço dos grandes rios brasileiros, o Cerrado cobre uma área de 2 milhões de km2 em 11 Estados, quase ¼ da extensão territorial do Brasil, e responde hoje por cerca de 60% da produção agrícola brasileira, mas está reduzido hoje a menos de 50% de sua mata original.

Quando iniciei a minha jornada no jornalismo do agronegócio, na década de 80, produtores do Sul e do Sudeste transformaram as terras do Cerrado em extensas fazendas de soja. 

A expansão da agropecuária no Centro-Oeste, impulsionada pela tecnologia gerada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), domou os solos ácidos do Cerrado, levou o Brasil ao topo do agronegócio mundial e é um dos orgulhos do país.

A ocupação do bioma pela monocultura de grãos trouxe muita riqueza, mas o custo ambiental foi enorme. A conversão dos solos do Cerrado em extensas lavouras provocou a degradação dos vários tipos de vegetação original, com a devastação de campos naturais e da rica biodiversidade da região.

O Cerrado abriga 12.070 espécies de plantas nativas catalogadas, 251 espécies de mamíferos e 856 espécies de peixes. Muitas frutas nativas, como baru, pequi, buriti e babaçu, estão ganhando mercado no Brasil e no exterior, oferecendo uma opção sustentável para cadeias produtivas geridas por pequenos produtores.

Nas últimas décadas, porém, as altas taxas de desmatamento passaram a comprometer seriamente a resiliência do Cerrado e sua contribuição para a regulação do clima, devido às emissões de gases de efeito estufa e ao grave impacto sobre seus recursos hídricos. 

O uso intensivo das terras do Cerrado para a produção de soja e de milho, sem um planejamento ambiental, reduz a oferta da água doce limpa que abastece oito das 12 regiões hidrográficas do Brasil e ameaça inclusive o abastecimento urbano e rural. 

Os conflitos de terra vêm se acentuando na região, principalmente nas novas fronteiras. O Cerrado é ocupado por um verdadeiro mosaico de diferentes tipos de povos e usos da terra: agricultores familiares, grandes produtores agrícolas, terras indígenas, territórios quilombolas, agroextrativistas e outros povos tradicionais. Muitas destas comunidades não têm a posse assegurada de suas terras.

A exclusão crescente das comunidades tradicionais, devido à especulação imobiliária e à grilagem em terras públicas, contribui para o aumento da pobreza rural e da degradação do Cerrado. 

O desenvolvimento de uma nova fronteira do agronegócio, na região conhecida como Matopiba (abrange áreas dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) vem resultando em expulsão de comunidades e povos tradicionais, desmatamento, contaminação da água, extinção de frutos nativos e de sementes crioulas, desaparecimento de tradições, sabedorias e modos de vida. 

A bacaba, o buriti e as áreas de brejo têm sido substituídas por soja, algodão, eucalipto e milho nas novas fronteiras. “A substituição do modo de vida tradicional para a produção do agronegócio impede a manutenção do Cerrado em pé e, assim, dos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais”, relata uma pesquisa da ActionAid. 

O pesquisador e ex-presidente da Embrapa, Maurício Lopes, que participou da expansão agrícola do Cerrado nos anos 80, prevê um novo futuro para a agricultura do bioma. Em maio deste ano, conversei com o Maurício para uma entrevista que fiz para a Folha de S.Paulo. 

“Provavelmente não vamos ver em 2050 essas imagens de áreas imensas no Brasil Central com soja a perder de vista e dezenas de colheitadeiras trabalhando lado a lado. Essas áreas serão bem menores e mais integradas”. 

Na opinião do pesquisador da Embrapa, as fazendas do futuro, no Centro-Oeste e em outras áreas do Brasil, terão que buscar modelos de produção mais integrados e resilientes, combinando múltiplas lavouras, criações e florestas que viabilizem a produção certificável de carbono-neutro de alimentos, fibras, energia, além de biomassa, que tende a se tornar componente para descarbonizar as indústrias química e de materiais. 

Outra oportunidade de negócios surgirá na forma de serviços ambientais qualificados, medidos e valorizados, que poderão atrair investimentos sustentáveis na agricultura brasileira. 

“Vai ser uma agricultura muito diferente da que temos hoje. Vamos ter um crescimento muito forte da consciência ambiental, da necessidade de se usar os recursos naturais de maneira segura e sustentável.”

Bruno Blecher

Especialista em agronegócio e meio ambiente e sócio-diretor da Fato Relevante