Não importa muito. Os 200 anos de independência são menos importantes pelo que já significaram do que pelo que podemos fazer com eles.

Por Silvio Bressan, sócio-diretor da Fato Relevante

Publicado em 7 de SETEMBRO de 2022


Ainda lembro da música e do futebol que marcaram o sesquicentenário da Independência. Corria o ano de 1972 e a ditadura militar não podia perder a chance de desviar o foco da repressão, da censura e das torturas para uma comemoração ufanista dos 150 anos do Grito do Ipiranga. A Seleção Brasileira, tricampeã mundial dois anos antes, novamente foi escalada para disputar a “Taça da Independência”. Da mesma forma, para repetir o inesquecível “Pra Frente Brasil”, da Copa de 1970, o jornalista e autor de jingles, Miguel Werneck Gustavo de Sousa Martins foi mais uma vez acionado para compor o “Hino do Sesquicentenário”, que inundou a mídia e as escolas do país. Como aluno do primário, no ensino público, lembro bem dos versos que hoje pareceriam irônicos, do tipo “esse Brasil faz coisas que ninguém imagina que faz”. Cinquenta anos depois, ainda fico pensando o que Miguel Gustavo imaginava que era feito nos porões do regime, longe do mundo encantado da propaganda oficial.

O próprio Miguel Gustavo não viveu para se explicar, porque morreu em janeiro daquele mesmo ano. Ficamos sem saber o que diria daqueles “anos de chumbo” – período responsável pela prisão, tortura, morte e exílio de centenas de cidadãos brasileiros – e como essa repressão poderia rimar com a “potência de amor e paz” descrita em sua música. Naquele mesmo 1972, aliás, uma epidemia de meningite alcançou seu auge, com 14% de mortalidade nas crianças do país, sem que pais e mães tivessem acesso à informação. Qualquer notícia sobre esse assunto estava proibida. Qualquer semelhança com a atitude de algumas autoridades atuais pode ser mera coincidência, mas nos faz pensar como ainda estamos longe da utopia na letra de Gustavo.

Em História, a pergunta de milhares de anos é se a trajetória humana na Terra é feita por ciclos ou por evolução. Até hoje não há nenhum consenso e provavelmente nunca haverá. Talvez seja mais correto pensar que a própria pergunta é a razão de ser dessa disciplina. A partir das novas experiências do presente, repensamos o passado para projetar um futuro diferente. Em outras palavras, a mesma efeméride tem interpretações diferentes a cada marco temporal. O bicentenário dessa quarta, o sesquicentenário de 1972 ou o centenário de 1922 são sempre importantes para refletir sobre aquilo que nos tornamos e como isso determina o que ainda queremos ser.

Assim, o centenário da independência, em 1922, teve uma comemoração própria, com a Semana de Arte Moderna e a explosão do movimento modernista, que rompia com os padrões de arte então vigentes. Cinco décadas depois, longe daquele movimento libertário dos “loucos anos 20”, o sesquicentenário substituiu a contestação e as novas formas de literatura, pintura, escultura e arquitetura pelo conservadorismo e ufanismo de um governo militar em busca de popularidade. Ciclo, evolução ou, quem sabe, involução? E agora, 200 anos depois? Andamos para frente, voltamos para trás ou ficamos de lado?

Muito provavelmente, todas as respostas estarão corretas se observadas pela lente de cada período. Prefiro pensar que avançamos em 1922, com uma geração que marcou nossa cultura a partir da informalidade, irreverência, liberdade de expressão e arbitrariedade
no uso das cores, sensações e palavras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Tarsila do Amaral, entre tantos artistas. Recuamos em 72, quando o país atravessava o período mais severo da ditadura militar. Naquele mesmo ano, enquanto as crianças cantavam “a potência de amor e de paz”, o serviço secreto da Aeronáutica monitorava 25 mil brasileiros, suspeitos de subversão. No mesmo relatório, as universidades brasileiras eram vistas como “celeiro de todos os problemas”. Esse documento serviu para aumentar ainda mais a repressão contra qualquer brasileiro que ousasse discordar do governo.

De 72 para cá, houve avanços e recuos. Conseguimos retomar o Estado de Direito, com uma Constituição democrática que garante liberdades individuais, eleições diretas e poderes independentes, entre outras conquistas. Ainda estamos devendo uma sociedade mais igualitária e solidária, uma consciência ambiental mais desenvolvida e uma atenção maior à educação e saúde. No auge da pandemia da Covid, voltamos aos tempos anteriores e contemporâneos ao Grito da Independência, quando a vacina e a circunferência do planeta ainda eram desconhecidas ou questionadas.

A grande diferença hoje é que podemos avaliar, refletir e aprender com cada marco temporal. Daqui a menos de 30 dias, nas eleições de 2 de outubro, teremos mais uma oportunidade de usar todo esse conhecimento para decidir se queremos avançar, recuar ou andar de lado. Os 200 anos de independência são menos importantes pelo que já significaram do que pelo que podemos fazer com eles. Como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “al fin y al cabo, somos lo que hacemos para cambiar lo que somos”. Em bom português e para quem ainda não entendeu: “Somos o que fazemos para mudar aquilo que somos”.

Silvio Bressan

Sócio-diretor da Fato Relevante

Bressan é jornalista graduado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), com especialização em Estilo Jornalístico. Tem 35 anos de experiência como jornalista e assessor.  No setor público, foi assessor da liderança do governo na Câmara Municipal (2005-2008), chefe de gabinete da Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de São Paulo (2019) e assessor especial na Câmara (2020). Em redação, entre 1986 e 2005, trabalhou nos grupos RBS (repórter e subeditor), Gazeta Mercantil (repórter), Editora Abril (editor), Jornal da Tarde (repórter de Política) e O Estado de S.Paulo (repórter especial). Como repórter ou assessor, já atuou em mais de 20 campanhas eleitorais em São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso e Ceará.