REPÚBLICA: UM IDEAL ACIMA DAS IDEIAS 

Por Silvio Bressan, sócio-diretor da Fato Relevante

Publicado em 14 de NOVEMBRO de 2022


A Proclamação da República brasileira, em 15 de novembro de 1889, certamente teve muitos vícios em sua origem e outros tantos em sua implementação, mas hoje, 133 anos depois, temos muito mais motivos para comemorações do que lamentações. Algumas ideias, que defendiam interesses específicos de determinados grupos, podem ter sido decisivas para o início do novo sistema de governo, mas ficaram pelo caminho. Muito acima delas, foram os ideais republicanos que sobreviveram e nos legaram um Estado democrático, laico, federativo e plural.

Ainda que tenhamos tido muitos percalços nesse trajeto até aqui, com revoluções e golpes, esses princípios sempre foram um porto seguro, um farol para indicar o rumo em meio à tempestade. Depois de uma das eleições mais tensas de nossa História, o aniversário da República serve para nos lembrar de como chegamos até aqui, o que não podemos repetir e o que é preciso para seguir adiante.

Em suas raízes, a palavra vem da combinação dos termos em latim “res” (coisa) e “publica” (povo). Apesar disso, a República brasileira começou muito mais ligada aos interesses das oligarquias e dos militares do que aos da grande maioria da população. Diante de um imperador (Pedro II) cada vez mais debilitado, os fazendeiros reclamavam da falta de indenização pelos escravos perdidos com a Lei Áurea, no ano anterior, enquanto as forças armadas reivindicavam maior protagonismo na cena política após a vitória na Guerra do Paraguai (1864-1870). Os dois setores foram muito influenciados pelo positivismo francês, principal inspiração da frase “Ordem e Progresso” estampada na nossa bandeira, que defendia esses conceitos baseados na ciência e no seu desenvolvimento para o bem-estar da sociedade.

O federalismo também era outro pilar desse movimento, essencial para a descentralização do poder monárquico diante de províncias cada vez mais rebeldes. Também influenciado pelo modelo americano, um poder baseado na autonomia e força dos 12 Estados fundadores, o republicanismo brasileiro transformou o nome “Império do Brasil” em “Estados Unidos do Brasil” como a denominação oficial do país (o nome atual de República Federativa do Brasil foi adotado pela Constituição de 1967). Essa maior abertura deu um contorno mais plural ao governo, que agora seria laico e tão democrático quanto as condições da época permitiam. Naquela conjuntura, os primeiros mandatários só poderiam ser militares, como o Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891), responsável pela derrubada do imperador e primeiro presidente, e seu sucessor, o Marechal Floriano Peixoto (1891-1894), escolhido por uma Assembleia Nacional Constituinte.

A partir daí tivemos a chamada Velha República, que durou até 1930 e foi assumida pelo revezamento entre as oligarquias de São Paulo e Minas, conhecida como a política “café com leite”. Para romper com esse sistema, a Revolução de 30 deu início à Era Vargas (1930-1954), incluindo aí a ditadura do Estado Novo (1937-1946), o retorno à democracia com a eleição do general Gaspar Dutra (1947-1950) e a volta do próprio Getúlio Vargas pelo voto (1950-1954).

Após o suicídio de Vargas vieram os anos JK, com a eleição de Juscelino Kubitscheck (1955-1960) e de Jânio Quadros (1961), que durou apenas sete meses no governo. Três anos depois, veio o golpe militar de 1964 e uma ditadura que só terminou na chamada Nova República, em 1985, o rito de passagem que nos levou à Constituinte de 1988 e as eleições diretas a partir de 1989.

Nesse quase século e meio, a República nascida de algumas ideias foi incorporando outras, como o voto popular (1894), o voto feminino (1932), o voto dos analfabetos (1985) e a Constituição Cidadã (1988), mudanças essenciais para se alcançar o Estado de Direito democrático que temos hoje no País. Nem sempre o sistema republicano conseguiu evitar retrocessos, como nos dois períodos em que o brasileiro ficou sem eleger seu presidente: na fase da ditadura da Era Vargas (1930-1945) e durante a ditadura militar (1964-1985) até a sucessão presidencial de 1989. De qualquer maneira, mesmo nesses períodos mais duros, aqueles ideais republicanos que, a partir das revoluções francesas e americanas, varreram os dois continentes entre os séculos XVIII e XIX, sempre resistiram e serviram como referência e esperança de um futuro melhor.

Se hoje temos um sistema republicano, com eleições diretas e livres e poderes autônomos e independentes, é porque os ideais permanentes e fundadores serão sempre maiores do que ideias eventuais e oportunistas. Como dizia a escritora britânica Annie Besant (1847-1933), “um ideal não pode ser apenas uma ideia, pois muitas ideias que o homem tem são tão frívolas e mutáveis que não se pode nem se dar o nome de ideias”. Para Annie, uma das socialistas e feministas mais importantes de seu tempo, o ideal necessita se alimentar de uma ideia construtiva e vitalizadora, que tenha efeito sobre o caráter humano, e não de um pensamento passageiro. “Ideias falsas e fixas produzem maníacos, não heróis ou idealistas. Para ser um ideal, a ideia fixa deve ser verdadeira, justa e em harmonia com os fatos.”

Assim pensava outro idealista do século XX, o teórico socialista italiano Altiero Spinelli (1907-1986), perseguido e preso por dez anos pelo fascismo, sem jamais ter abandonado o ideal de uma Europa unificada e democrática. Mesmo nos piores momentos, exilado na Ilha de Ventotene, Spinelli nunca desaminou. Usou folhas de papel de cigarro, escondidas numa caixa com fundo duplo, para redigir o manifesto “Por uma Europa livre e unida.” O documento mais tarde ficou consagrado como o “Manifesto de Ventotene” e é considerado um dos textos fundadores do federalismo europeu. Hoje, o edifício principal do Parlamento Europeu, em Bruxelas, traz o nome de Altiero, e a ideia de uma Europa unida, apesar dos “Brexits” da vida, resiste e serve de contraponto a aventuras e atrocidades como a Guerra da Ucrânia.

Da mesma forma, os ideais republicanos de franceses e americanos já atravessaram mais de dois séculos e continuam servindo de inspiração para democracias jovens, como a nossa. Mesmo após ter enfrentado duas ditaduras e convivendo ainda hoje com atos anti-democráticos, como os recentes bloqueios de estradas promovidos por eleitores inconformados com o resultado das urnas, a República brasileira parece uma ideia cada vez mais forte. A explicação talvez esteja numa frase que Spinelli costumava usar para animar seus colegas de cela, durante os momentos mais críticos do exílio: “A grandeza de uma ideia não se mede pelo seu sucesso. A grandeza de uma ideia mede-se pela sua capacidade de nascer de novo depois de cada derrota.”

Silvio Bressan

Sócio-diretor da Fato Relevante

Bressan é jornalista graduado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), com especialização em Estilo Jornalístico. Tem 35 anos de experiência como jornalista e assessor.  No setor público, foi assessor da liderança do governo na Câmara Municipal (2005-2008), chefe de gabinete da Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de São Paulo (2019) e assessor especial na Câmara (2020). Em redação, entre 1986 e 2005, trabalhou nos grupos RBS (repórter e subeditor), Gazeta Mercantil (repórter), Editora Abril (editor), Jornal da Tarde (repórter de Política) e O Estado de S.Paulo (repórter especial). Como repórter ou assessor, já atuou em mais de 20 campanhas eleitorais em São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso e Ceará.